quarta-feira, 26 de novembro de 2008

Alagado.
















Amigos, leitores, blogueiros!

Minha cidade está destruída, assim como boa parte do estado de Santa Catarina. Sinto-me impotente de não poder ajudar, estar perto de amigos e parentes ilhados, desabrigados e desesperados. Aqui no Rio, hoje, brilha um sol que por hora dispenso (preferia que brilhasse em Blumenau), uma insônia de noites de preocupação e um esforço para não largar tudo e voltar pra minha terra, tentar ajudar. Muita sorte, luz e garra pra gente que, outra vez, precisa levantar de uma catástrofe e recuperar os móveis, o orgulho, os perdidos e a beleza da nossa cidade. Amo vocês, e este texto é para vocês. Com todo o carinho. Fábio, usei tua casa como inspiração.

Doações em dinheiro, deposite: Caixa Econômica Federal - Ag. 0411 - Cc 80 000 - 0

Alimentos, roupas, cobertores, fraldas (pra quem é da terra): Fundação Pró- Família, Rua Itapiranga, 368, atrás do Galegão. (fonte: Jaime Avendano, diretor do Jornalismo - SECON, Prefeitura de Blumenau (47) 3326 6995 ou (47) 99689713).



Da janela do meu apartamento vejo a água subindo lentamente. Não há energia, deixei o mercado pra última hora e o último gole de água que me resta dei aos gatos na cozinha. Caminho de um lado pro outro. Escuto o som dos bombeiros, da chuva, e dos carros que teimam em tentar escapar dessa enchente maldita.
Olho pro último lapso de bateria que resta no visor do meu celular. Ligo: “Sonhei contigo. Sonhei com nossa antiga cama e com nosso abraço. Sonhei com um abraço forte. Eu queria, no sonho, te dizer que eu te amo e que acho que vou te amar até o último dia da minha vida. E no momento em que eu te diria isso a água entrou em nosso quarto e desatamos o nó de nossos braços. A água entrou e partiu em duas partes o que sempre foi uma e eu gritava por ti, e tu por mim, e nos separávamos sem saber direito o porque. E eu não respirava como sempre, eu não tinha mais ar, e pela primeira vez na vida vi a morte como um possibilidade fácil e possível. Sem medo na verdade. Acordei. Tudo estava absurdamente escuro e chovia muito. A água batia no parapeito da janela e molhava de leve o velho tapete laranja. Senti tua falta.
Estirei sem medo meio corpo pra fora e senti a chuva bater com força na minha boca semi-aberta. Sede. Pensei em pular. Senti-me ridículo. No morro na frente do meu prédio, uma casa desmoronou naquele exato momento. Junto com ela mais três que estavam embaixo. Uma delas era a nossa. Vi cada bugiganga que consegui juntar na vida virarem nada. Ri dos detalhes ridículos da decoração azul do nosso antigo banheiro sumirem com a lama. Sempre achei brega aquele banheiro. Nunca te incomodou. Vi toda a sua coleção de discos do Beatles virarem adubo. Vi tudo se perdendo sem previsão pra reconstituir. Meu coração partiu. E eu, que tanto choro, não consegui derramar uma única lágrima. Engraçado... Ando chorando pouco mesmo na pior dor.
Eu só queria um sol amarelo, poucas nuvens num céu azul, um campo dourado de girassóis, um vento refrescante, sorrisos em árvores, violinos afinadíssimos tocando a tua música preferida, um rio gelado pra tomar banho e maçãs pra matar a fome. Eu queria neste exato momento tocar tuas mãos de leve com as minhas e te redescobrir inteira. Falar-te de um filme que vi, te atrapalhar a leitura, e rir de qualquer besteira.
Mas, o que tenho aqui dentro é um quarto pequeno e lá fora, chuva. A cidade está destruída. Eu também. E me desculpa te ligar agora, está acabando a bateria, mas eu precisava te dizer essas coisas, sabe como é, o prédio é velho e tenho medo que desmorone, como a nossa casa. Ao mesmo tempo não quero abandonar os gatos aqui sozinhos, os bombeiros não me permitem levá-los. Mas não se preocupe, estou bem. Estou bem.”
Tento seguir e tento voltar.Dou voltas em torno de mim mesmo. Desaba tudo ao meu redor. Vejo a bomba do posto sendo devorada pela água, vejo as ruas por onde andei tranquilamente em minha infância cheias de lama, ouço gritos de mães que procuram os filhos em escombros, e te vejo longe, num bote salva-vidas gritando por meu nome. Tento gritar, a voz não sai, tento correr e não saio do lugar, meu coração bate mais forte, vomito pregos e arranjos florais, e só então percebo que ainda não acordei. Tento conscientemente dentro do meu próprio sonho acordar e não consigo.
Toca o telefone. Desperto. Dou um tapa na minha cara pra ver se acordei mesmo. Sinto dor, alívio. Sorrio. Atendo o telefone. Era você dizendo, 5h da manhã, que sol surgia tímido e a água baixava lentamente. Abri a janela e vi o seu Maneco reabrir o bar e analisar o estrago, um bote engraçado passar entre a sombra do prédio e a claridade do novo sol, e um moço fechar sorridente o guarda-chuvas. Senti um pingo de esperança. Por mais insano que possa parecer, só o que eu consegui te dizer, com a voz falhando e voltando foi, “meu guarda chuvas está quebrado”. Você riu. Eu também. “Eu sonhei contigo!” Saiu da minha boca. “O que?” “Outra hora te conto”. Desligo. Um pássaro canta. Choro.






terça-feira, 23 de setembro de 2008

A incapacidade de contar estrelas num triste fim de tarde.


Ola amigos!

Desculpem a demora e a ausencia de assentos. Por coincidencia, nao so a menina que ri anda pelo mundo, peguei a estrada e atravessei o planeta. Estou na India, filmando, vivendo, e refletindo muito. Danada da menina que previu essa viagem. Quanto mais eu fujo dela mais ela sorri. Beijos.



Do terraco do predio velho pensava que voava a menina. Ouvia canticos de vozes masculinas a Ala, por do sol do fim do dia em um bairro muculmano. Deitada no parapeito era o ceu que ela via. Sentiu vertigem.

Ventava em Chennai. Voava a menina.

`Dificil viver sem chao. Olhar para um ceu de distinta constelacao` e se atirava no nada, como se o ceu fosse um precipicio ao contrario. Sentiu medo a menina. Medo de, deitada no parapeito do terraco, cair para cima.

O canto acabou. O vento levanta a saia dos homens que caminham do templo a suas casas. O ceu teima no rosa dos raios cansados. Os corvos gritam na copa da arvore. `Que sentido se nao o viver? Grande merda a supergirl que cruza o mundo e agora voa no muro de um terraco pra descobrir que a pinta do lado do umbigo e a mesma em qualquer direcao que se va. Aqui, sem estrelas decifraveis, abracos vaos, pao de queijo com requeijao, a menina agradece ao silencio por doer a solidao. `Nada nem ninguem nesse mundo vale mais do que um grao`.

terça-feira, 29 de julho de 2008

O triste fim da mulher do atirador de facas.



"Aqui é minha casa" dizia sobre o colorido desbotado da velha lona, do velho circo, a mulher do atirador de facas. Lucy era seu nome e já não mantinha aos 30 a mesma beleza que possuíra aos 20, mesmo assim era bonita. Lucy amava Oly, o encantador de baleias, mas era casada com Xico, o atirador de facas, seu companheiro no número mais antigo do velho circo.

Oly era tão cego quanto suas baleias. Dançava no mar como criança que brinca na areia. Não lia, escrevia, mas vivia de poesia. Chorava como uma foca ao ouvir as facas de Chico voando e rasgando a beira da roupa de Lucy.

Lucy tinha orgasmos ao sentir a pele arranhando superficialmente. Xico dominava como ninguém aquele número. Todos os dias a mesma coisa: a precisão de cada arremesso era a tristeza de mais uma rotina. Lucy sonhava com o erro, uma cicatriz, uma dor, um sentir, e nada. Xico repetia enquanto soltava as facas: " Belo número, amor".

Lucy um dia cansou. "Me entrego inteira a esse mar, a esse homem, Oly, te amo como amo a liberdade". A Oly beijou, tirou a cola que cobria seus olhos, Oly enxergou. Achou o mar feio, a baleia estúpida e Lucy deprimente. Oly se matou.

Xico sofria e a cegueira se entregou. Definhou. Envelheceu. Ficou patético de tão gordo. Bebeu e vomitou inúmeras noites. Teve mulheres como nunca. Putas, atrizes, dançarinas de cabaré, cantoras baratas, madames em colares de pérolas. Bucetas novas e velhas circularam por sua cama. Mas, Xico só queria Lucy, a companheira dormindo e roncando ao seu lado no buraco de anos do colchão barato.

Lucy alimentava a baleia com sua dor transformada em gotas de por do sol. Se irritou profundamente com a poesia natural das coisas e decidiu ir embora. "Não quero enxergar horizonte. Xico querido, te deixo livre pra seguir qualquer caminho, não quero ser pra ti uma pedra que causa dor. Eu sumo, eu vou, mas te peço, só mais uma vez, a última, faça com que esse momento seja especial".

"Nunca traí mulher minha" consente Xico pegando o saco preto com as facas afiadas e velhas. E na primeira tacada, como se fosse a ação de anos, como se enxergasse mais claro, a faca entra certa, no lado esquerdo de Lucy, no meio. ela olha para cima pela última vez, vê pelo rasgo da velha lona o último pedaço de céu. "Obrigada por tudo Xico". Morre sorrindo, o sangue escorrendo, os olhos cheios sem que lhe caia uma única lágrima.


Fim.

sexta-feira, 27 de junho de 2008


Menina abre a janela e vê passarinhos, doce Branca de Neve cantando pro sol que amanhece neste dia frio de junho. Ao contrário do conto não existem 7 homenzinhos, quem sabe o príncipe encantado, “isso fica mais pro fim da história” sorri cantado a menina que ri.
Ontem Bela Adormecida despertando com doces beijos de amor. E mais do que Bela Adormecida o abraço mais quente sob o cobertor mais macio do que peles de princesas em contos de fadas perdidos em livros empoeirados sobre estantes de escolas públicas. “Eu te amo” ouvia a menina com ramelas nos cantos dos olhos recém abertos. “Também te amo” sorri acordando a menina que ri.
Cinderela calçava o sapato na porta que dá pra rua mais colorida que tintas guache podem colorir. “Com um beijo me despeço, levo comigo teu cheiro e teu todo guardado no lado esquerdo de mim” pensava enquanto erguia o pé no abraço final daquele dia que começava, tinha que ir a menina. De all star branco sem cristais, sem glamour (ou carruagens que viram abóboras), sorri caminhando a menina que ri.
Dorothy menina pela estrada de pedras amarelas, caminhando do Humaitá até a casa em Ipanema pensava nos amigos e naquele que de sobra tem coração, cérebro e coragem. Nem homem de lata, espantalho ou leão. “Menino”, sorri pensando a menina que ri.
E, finalmente, de Rapunzel sem tranças, apenas a altura (1,73) e os cabelos loiros (luzes sobre o loiro escuro natural) ouve a voz do príncipe que lhe chama (no celular “estou na frente da sua casa”). Segura a ponta do vestido e desce correndo a curva das escadas, dribla o soldado (porteiro) e rompe as grades do portão. O menino lá, sorrindo, sobre o seu cavalo (bicicleta) “passei pra te dar um beijo”. Enquanto se abraçam a menina disfarçadamente espia sobre o ombro do menino e vê passar, dentro do ônibus que vai pra Gávea, os sete anões, as três fadas, outra fada, o mágico, a vovozinha, a fera e tantos outros, gritando, abanando e sorrindo num estardalhaço fenomenal. Menina ri. “Do que estás rindo?” pergunta o menino. “Nada” sorri amando a menina que ri.

segunda-feira, 26 de maio de 2008

Abril despedaçado.


Dedicado a Mateus, Tato, Chris, Guto, Prima, Jean, Jaguarito e Lars von Trier.


A menina zerou. Foi sambar e levaram da bolsa quem era a menina. A foto, o telefone dos amigos, os números que são menina em documentos, chave da casa, agenda e bolsa, presente do amigo baiano da menina. Sorte, sorte que na Lapa existem anjos, lindos, amados, que seguraram com força a mão, os braços, e levaram consigo a menina, pra que não chorasse, pra que as tristezas do dia terminassem ali, no vazio do bolso, na casa trancada, no mar da rua que tem na frente.Dormiu envolvida em asas, espirrou com a pena do anjo que entrava pelas narinas. Chorou só um pouquinho.


A menina fez anos em abril. Lembrou, por um momento, do bolo da festa de cinco anos, uma cara de palhaço que dava pena de comer. Lembrou das mãos da avó segurando seus cabelos ainda molhados ("por que não seca?"), do sorriso da mãe preocupada com os convidados ("não põe o dedo no bolo, filha"), da lágrima do pai, orgulhoso, vendo a filha arriscar pela festa alguns passos de balé ("paulica, vem me dar uma bicoca"). Lindas lembranças. Bom ter do que lembrar. Desse ano a menina só quer esquecer. Voltou pro frio de céu azul. Ouviu, sentiu, chorou, surtou. "Nem tive bolo!" Zerou.


Queria escrever, a menina. Sentou no computador, coca light, cigarros, inspiração e... nada. Tudo preto. "O que tem ele, moço? Cadê minhas coisas? Meus textos tristes? Fotos sorrindo e fotos de lugares? Cartas guardadas? Poesia? Segredos descritos em longas dissertações? Onde moço?" E o moço, palito mastigado no canto da boca, facão na mão: "Deu pobrema menina. queimou a tal da placa mãe. Vais ficar sozinha em abril, nada de amigos online, nada de skype, yogurte, email só rápido na lanhouse. Ah, perdestes quase tudo!" "Não, moço, perdi tudo. deixa ir". E a menina deixou.


Caminhando e cantando, sem lenço e sem documento, o sol surgiu. E na primeira terça feliz do mês de maio a menina cortou a mão. 3 pontos, nova cicatriz marcada no canto esquerdo, da mão, do peito. Cicatriz pra olhar a vida toda e não esquecer que tudo merece um recomeço. Zerada, marcada e amada, menina sorridente sonha e volta a cantar como se fosse a primeira vez. Estranha o microfone na mão costurada e segue como se fosse a penúltima canção. Sempre a penúltima (pra que não tenha fim).




"Dizem que é a última canção, mas eles não nos conhecem, só será a última canção se deixarmos que seja." (Dançando no Escuro - Lars Von Trier).

terça-feira, 1 de abril de 2008

A beleza do Rio ou o dia em que a menina se viu.



Eram muitas pessoas. Bebiam e sorriam dentro de rostos Mac e batons chanel. A menina também, bebia e sorria borrando o batom. Abraços e promessas, beijos sem compromisso, lanchas e passeios em campos de golfe. Zero sentido. "seu vestido é lindo, seu cabelo está horrível, essa é a música que você tem que ouvir, dance assim, coma isto, suba no salto mesmo que te cause bolhas e dor, puxa o cabelo, use muito ouro nessa estação, creme anti-rugas, sorria na foto mesmo que esteja triste, clareie os dentes, brinde, não coma, seja magra, seja linda, tenha 18 anos sempre!"

E a menina olhava pro mar sem conseguir entender seu brilho.

Apertos de mãos frias não fazem sentido. Congelam as veias podendo causar uma parada total do músculo central, que pulsa, fraco. E na última festa do ano, enquanto caminhava sozinha, as 6h da manhã com o sol a nascer sobre o mar de Ipanema, a menina chorou. Que 2008 venha como o sol, quente, brilhante, intenso.

E logo em janeiro a menina beijou. Era como um beijo de filme, alguém gritava corta. Tarde demais pra um coração cansado de sofrer. Do set veio o jantar, a peça, o filme, o cirque du soleil, o vinho e as tardes lindas de chuva sobre o colchão. A menina descabelada, sem maquiagem, havaianas nos pés e o abraço mais quente da pele mais macia. E como se todo o aconchego não bastasse, a menina seguiu esbarrando em corações intensamente cheios de vida e verdade. Alguns já tão especiais na vida dela. A escritora que a fez chorar (D), o ator que a fez sorrir (C) o diretor que a fez sentir (T), o ator/tradutor/diretor (F) que lhe devolveu esperança. E ele, sempre ele, montado na bicicleta entre curvas e esquinas (mal sabe que tem asas, não precisa de artifícios pra voar), lhe devolveu o coração embrulhado carinhosamente num pote de Haagen-Daz.

Hoje, enquanto voltava pra casa, na mesma orla de Ipanema, com o mesmo sol intenso, quente, brilhante, ela sorriu e entendeu o maior de todos os sentidos. A beleza do Rio não é Ipanema, o Cristo, a floresta... é poder sentir-se pela primeira vez em um lugar seu, plena de sentidos, sem carcaças.

A menina agradece.

segunda-feira, 24 de março de 2008

Perfect Night.


A menina ri para todos que cruzam seu caminho. A menina é alegre e cativante. “Simpática, bonita, querida, um amor... e que coração” dizem os que a conhecem.
A menina deita no travesseiro e chora. Sente-se mais só do que em toda a sua vida.
Ela conquista. O telefone não pára de tocar. Todos querem conhecer, tocar, beijar, viver, usar. Onde passa arranca suspiros, é daquelas que atrai os olhares de todos ao entrar no salão.
Mas, deita no colchão macio e afunda sozinha em lágrimas doídas.
Tem a pele macia. Victoria Secrets diretamente do exterior, parando sobre a prateleira e dançando na pele perfumada da menina. Corpo bonito, mãos de seda, unhas feitas e cabelo macio.
A menina deita e não consegue dormir. Chora a menina.

Por um momento pensa em desistir. Mas recorda os filmes com seus heróis em desfechos emocionantes e finais felizes. Lembra dos sonhos que teve, da força que eles tinham. Contraste com a dura realidade de sentir-se tão só. Ela não consegue mais sonhar. Ela tenta e não consegue porque não acredita em mais nada. Não acredita em Deus (sente-se abandonada), não acredita em amigos (os bons estão longe ou montados em carcaças de sorrisos falsos), não acredita em futuro (uma merda), não acredita em promessas (palavras falsas), não acredita no amor. A menina só consegue acreditar na mentira e na solidão. No prazer que vem, faz cócegas e vai embora.

Submersa no cinza esverdeado dos lençóis ela digita um texto qualquer e vomita do fundo do lodo toda a bosta da vida.
Hoje a menina chora.

quarta-feira, 12 de março de 2008

A menina e seu ipod, ou a vida com trilha sonora (segundo Daniel Olivetto, by Malcon Bauer)






Caminhando pelo centro, com toda a poluição sonora característica das grandes cidades, ela ouve "Fico assim sem você" da Adriana Calcanhoto. E a frase que não sai da cabeça, e que arranca lágrimas ali, no meio daquele povo todo é "Por que é que tem que ser assim?", a mesma frase que a fez chorar na frente do micro baixando a música, "Por que é que tem que ser assim?" E de noite, com um ouvido só que ouvia (porque o outro queria captar o que estava ao seu redor) "... DEITAR NO TEU ABRAÇO, RETOMAR O PEDAÇO QUE FALTA NO MEU CORAÇÃO, EU NÃO EXISTO LONGE DE VOCÊ". E sempre, "por que é que tem que ser assim?".

A menina chora compulsivamente com uma dor maior do que a dor que cabe no peito. A menina come rosquinhas e caminha chorando dentro do óculos de sol. "Por que é que tem que ser assim?"

Muda a música. "Secret heart" da Feist." E seguia acertando os passos para que dançasse caminhando. E pensa na letra: "coração secreto, do que você é feito?" e mais, "Deixe-os entrar no seu coração secreto... tem algum segredo que você está tentando ocultar?É o mesmo que você está morrendo pra revelar? Vá falar a eles como você se sente..."
E a menina tem muita vontade de falar como se sente, como se sentir tivesse explicações, como se pudesse publicar um livro cheio de verdades. Mas as palavras não acompanham o que só os olhos expurgam. Então, o que tem a fazer a menina, é seguir mesmo assim, ipod ditando a trilha sonora das cenas seguintes, e o rosto molhado sempre com as lágrimas de quem falta algo. "Vai ver todo mundo é triste" pensa a menina. E é isso.









quinta-feira, 28 de fevereiro de 2008






A menina ouviu no andar de baixo a amiga gritar por socorro. Tira o chinelo e acerta a primeira barata da noite. Mais gritos, mais socorro: "são duas e estão na cozinha". e lá vai a menina fuçar dentre os esconderijos escuros: embaixo do fogão, da máquina de lavar roupas, da mala. "São 3", responde a menina depois de esmagar impiedosamente cada um dos insetos. Via-se as entranhas.
A menina não tem medo de baratas, aranhas, mosquitos e abelhas. Até simpatiza com eles imaginando a vida tão ordinária que levam. Quando pequenina conversava com alguns. O mosquito, por exemplo, bichinho simpático que suga o sangue e provoca na pele uma pequena bolinha "é bom de coçar"certo dia lhe disse: "Tenho só um dia de vida. E vc?" ela, "Sou pequenina, mas tenho mais. Quero ver tanta coisa ainda" e olhava pros miudinhos em torno da luz... "bicho burro" pensava e ria.
Um novo grito: "Me ajuda!". E outra barata, dessa vez no quarto. Chineladas após "descanse em paz no mundo dos invertebrados".
O homem está lá, dedetizando tudo. Jogando a modernidade em cada canto perdido da casa da amiga.
Durante a noite a menina teve pesadelos. Acordou como se banho tivesse tomado, como se a janela estivesse fechada, como se lençois fossem cordas. Ar. Quero ar. Respira. Voltou a fuçar os cantos escuros, dessa vez de dentro. A amiga dormia, ninguém pedia socorro. Era ela que gritava, mesmo sem voz, ali, deitada olhando pra nada, como se nada existisse em forma escura. "Não quero chorar, não quero ter medo. Eu sou forte." Gritava "sou forte"! E ninguém ouvia.

Olhou pela janela da sala e viu passearem pelo térreo novas baratas, provavelmente chorando a morte daquelas que partiram. "Eu sou forte" disse a menina pro público, três, pretas e achatadas. "Vou descer e acabar com vocês!"
Ela desceu as escadas com a havaiana na mão esquerda. "Eu sou forte, eu sou forte, eu sou forte" era o mantra que repetia. Olhou de perto, bem pertinho. "Tadinhas...tão assustadas, nem sabem por quê. Correm pra lá e pra cá sem chegar a lugar nenhum. Procuram migalhas e se contentam com um grão de açúcar derrubado por uma criança distraída." Guardou o chinelo. "Amanhã chamo o síndico, esse prédio precisa do veneno dedetizador matador de insetos, do veneno moderno que anestesia e acaba com o que é feio". "Acaba nada" Era uma voz aguda. "Pelo menos esconde" retruca a menina.
Cansada, descabelada e embriagada pelo sono a menina volta pro quarto. Tem medo de dormir e voltar a sonhar. "Eu sou forte" pensa com a força da mais frágil nota de um piano. Na janela aberta (ela ama dormir com a brisa de Ipanema) migalhas de rosquinha doce entretém as mesmas três baratinhas que assistem e aplaudem a menina que agora dorme. Em côro, de patinhas dadas e voz aguda dizem "Sonhe com os anjos menina que ri, sonhe com os anjos."

sexta-feira, 22 de fevereiro de 2008

Sobre os clássicos.


A menina assiste “E o vento levou” com os olhos por trás das lentes de aros vermelhos, vibra com cada lágrima de Scarlett O’Hara. Olhinhos grudados na tela. O coração batendo mais forte. “Jamais sentirei fome novamente” grita a protagonista. A menina chora.
A menina sente fome, as mãos tremendo ao segurar o copo com suco de abacaxi. Tenho medo, grita “TENHO MEDO”. A chuva cai incessantemente. A janela aberta permite que os pingos grossos molhem a almofada de coração. A menina quer se molhar, quer se entregar, quer se jogar pela janela sem sentido. Ri e chora num curto espaço de tempo, como numa rubrica de Tcheckov.
A menina lê, anda pela casa, fuma outro cigarro, joga fora pela metade “souza cruz é uma merda”. Ainda treme. Ainda grita. Ainda chora e ri como na peça.
Cansada da solidão pega o telefone e disca. “Queria dar boa noite”. É a única coisa que consegue dizer, a única. Sem acreditar na timidez, na paspalhice e na bobeira de qualquer apaixonada segue vendo o filme. “Não tenho paciência pra clássicos hoje”. Pega o telefone, finge que disca, finge que é ouvida: “Queria dizer que não sou tudo o que dizes, que sou ciumenta, sou chata, sou agressiva, tenho fortes TPMs que me fazem jogar vasos chineses contra a parede, que gosto de filmes que ninguém gosta, que tenho preguiça de fazer o que já deveria ter feito, que ouço coisas bregas, que comédia as vezes me deixa entediada, que vou ao banheiro de porta aberta, que choro em comercial mesmo achando piegas, queria dizer tantas coisas, meu cabelo é ruim e esse aplique me incomoda, estou gorda, que já não suporto mais ouvir que sou a bunda do filme, odeio gente metida a rica, odeio gente egocêntrica e que se acha especial por algum motivo, e minha unha do pé está feia e machucada (doendo pra caralho) porque saí correndo que nem uma louca pra te ver na TV. Queria dizer também que gosto de ti. Não sei quanto, não sei como se mede isso, mas tenho vontade de estar ao teu lado sem fazer nada, só abraçados, ou de fazer tudo. Que teu beijo e teu abraço são infinitamente bons, que teu cheiro é o mais doce, perigas ser descoberto por uma indústria de perfumes louca por um lançamento arrebatador. Merda! Queria dizer que também tenho medo, que estou assustada e normalmente já teria pulado fora. Tem umas 5 pessoas interessantíssimas me ligando pra sair, e eu dizendo ‘não’, sem entender ao certo o porquê. Agora queria ouvir você.”
Silêncio. O telefone estava com o descanso de tela, uma foto da menina sorrindo na praia. Fechou o celular pra não gastar bateria e foi pro quarto assistir ao resto do filme ao lado de um balde de pipocas, uma coca zero (preferia a light), só. A campainha toca, era o menino. “Dorme comigo hoje?” E a menina dormiu no lugar mais seu, sorrindo e chorando em curtos intervalos de tempo. Tcheckov adoraria.

sexta-feira, 15 de fevereiro de 2008

Da beleza triste de sentir-se só.






O cachorrinho ganha biscoitos. Todos acham bonitinho, ajudam, tem dó. Mas ninguém tira ele da caixinha de apagar cigarros. A menina senta ao lado e se sente só. Quer fazer companhia ao bichinho, mas o trem já vai partir. Ela apaga o cigarro, sorri, despede-se. A menina dorme durante a viagem. Sonha com estrelas. Acorda chorando.

segunda-feira, 4 de fevereiro de 2008

Marinas e maçãs.


“Marina caminha o que sempre caminha todos os dias. Cercada de maçãs sente o cheiro doce, mais do corpo do que da fruta. Mais suor do que sabor. Marina, que sempre acreditou que a felicidade estava no lar, tem medo de abrir a porta e encontrar Antônio. Tem medo de nunca mais poder olhar em seu rosto com a alegria e o aconchego que sempre tivera olhado. Ela, em seu caminho de 88 passos até a fechadura, pergunta-se até onde vale a pena esses momentos tão cheios de prazer que viveu com Pedro. Pergunta se o cheiro, o gosto e a calcinha levemente apertada valem a pena. Pergunta também se o que acredita vale mais do que o que sente agora. Decide, no tempo de um piscar de olhos, tirar os sapatos e pisar no chão de terra. Larga a bolsa, solta os cabelos e sente o vento entrar pelos fios até arrepiar a nuca. Sente novamente o cheiro. Toca levemente com a ponta dos dedos as folhas das macieiras que estão ao alcance de suas mãos. Já não anda mais em linha reta, caminha um passo torto, rodopia, pula, permite-se a loucura. Marina já não pensa. Marina simplesmente deixa os olhos inundarem e sorri largamente, um sorriso feio de tão aberto, mais de gengiva, mais de saliva. Marina quer se perder nos 38 passos que restam até a porta e, no abrir de olhos, vê Antônio com um olhar curioso. Ele não enxerga a esposa que tece, costura e chega com os braços cansados dos repetidos movimentos da máquina. Na verdade se assusta com uma desconhecida que se deixa voar com o vento e a cor vermelha das maçãs.”


Trecho de uma história qualquer, que vai virar um longa qualquer, qualquer dia por aí.Trabalhando no argumento.Obrigada aos visitantes e comentários.

Beijos.

terça-feira, 29 de janeiro de 2008



A chuva segue caindo e bate no parapeito da janela. O cheiro, o frio, o mato molhado criam purpurinas que ornam a poesia natural do momento. O lençol está emaranhado e o corpo ao lado descansa. A mim, só resta manter os olhos e os sentidos completamente escancarados pra não perder nenhum detalhe. Nenhum pingo que cai (porque a chuva nada mais faz do que purificar), nenhum roçar de lençol (porque arrepios nem sempre são passageiros), nenhum cheiro (porque quando te cheiro não é pra sentir teu perfume, é pra te trazer um pouco mais pra dentro de mim).
Essa cidade respira carnaval e eu, andando por aí quase como quem dança, vejo cores que nunca vi, sonho flores que nunca senti. Como se o chão caminhasse por minhas pernas. Como se a qualquer passo eu corresse o risco maior da queda. Porém o medo de quebrar o nariz é rapidamente substituído por tuas palavras no visor do celular. Sou feita de coca light, o gás escala ladeiras.
Olho pro Cristo como se ele fosse se atirar assim, de braços abertos, sobre a Baia de Guanabara. Mas chove. Não é dia pra isso. Olho pra mendigos como se fossem sorrir pra mim, mas é frio. Olho pro chão como se tudo fosse uma festa, mas são só as serpentinas do pré carnaval de Ipanema. Tiro os sapatos. É preciso ter cautela ao pisar em terreno desconhecido. É preciso aguçar os sentidos pra sentir o piso.
Chego a casa. Espio pelo buraco da fechadura. A luz acesa, a TV ligada, vozes que não conheço. Volto pra rua. De pés descalços largo a bolsa (antes acendo um cigarro). Jogo longe o guarda chuvas (peso demais carregar um telhado pra não se molhar). Tiro o casaco e sigo pro mar. Mesmo sem pôr do sol, mesmo sem calor, mesmo sem barraca, cadeira e biscoito globo, me atiro, de olhos fechados sem saber nadar.

terça-feira, 22 de janeiro de 2008



A menina, ao olhar o magnifico pôr do sol, repara nos meninos que jogam frescobol na areia de Ipanema. A bolinha vem, vai e cai na água. Mas eles não desistem, persistem no jogo. A menina, ou melhor, eu, parada fico pensando nas coisas da vida, no quanto ela pode ser piegas e bonita num curtíssimo espaço de tempo. Já em casa, epois de desabar o céu em pingos gelados de chuva, diálogos loucos comprovam a teoria.


1 - Sobre a saudade dos amigos: Contatos de algum grau desconhecido.


Eu: Ando fumando muito e vivendo momentos muito intensos por aqui.


Mani: Ando fumando bastante também... Esses dias eu fumei e escrevi um texto na varanda da Sandra. (rs) E tu, que contas?


Eu: Andando com um povo de teatro, muita saudade dos palcos.


Mani: Eu tô ficando louco com essa coisa do espetáculo. Depois do dia 10 quero mais umas duas semanas de folga.


Eu:Mas não é bom viver tudo isso?


Mani: Total! Olha o que eu to ouvindo: (???) Aparece aí?


Eu: Não!


Mani: Aaaaa kipon fólen!!! rsrsrs


Eu: rsrsrsrs Vou ouvir tb...


Mani: Aí nois fais contato!



2 - Sobre o sofrimento compartilhado: pessoas que se atiram de cabeça e se apoiam.


Eu:Acho que tudo vale a pena ser vivido!


Mali: Também acho que vale a pena! (...) Todo o sofrimento é bom. a gente fica mais fortalecida. O mais complicado é saber o que realmente queremos, não acha? Se a gente sacudiu a nossa vida dessa forma é pra pelo menos mudar, e mudar bastante!


Eu: Tb acho... esse ano tenho pra mim que quero trabalhar. Muito cinema, muitos projetos, muita coisa que quero que aconteçam. Não vou tirar o foco disso. apesar de sofrer muito com essa escolha.


Mali: isso aí Paulinha! sua hora é agora e vc tem que colocar toda sua energia e foco nisso! enquanto quiser, logicamente... E sabes que sempre contarás com meu apoio e torcida...


3 - Sobre o medo de viver. Porque palavras nem sempre dizem tudo.


Meno: Tens medo?


eu: um pouquinho... E tu?


Meno: Sempre tenho medo.


4 - Sobre o nada. Porque palavras as vezes não dizem nada, mas nos fazem rir.


Mumu: eu vou pra Miami, Paris, Nova York, Milão, vou ser uma puuuuuuuta de uma estilista, vou casar com o Rafael e a gente vai na roda gigante sábado.... ele está chegando de Miami e vai trazer um puuuuuuta presente pra mim. Ele me liga todos os dias, é apaixonado por mim, e vamos casar dia 8 do 8 do 8.


Eu:(risos) cuida!!!


Mumu: Cuida. Jesus de bicicleta, essa minha prima tem que internar.


Os nomes foram trocados pra que se preserve a privacidade das pessoas. Só eu que sou eu. Nem menina, nem ninguém. Hoje, só um pedaço do céu faz sentido.





terça-feira, 15 de janeiro de 2008

La Dolce Vitta!!!



Foi ao cinema. Queria ver um filme do Fellini. Achou lindo o cartaz “La Dolce Vitta”. A menina adora cinema e o pipoqueiro já a conhece: “Doce ou salgada?” Meio a meio. Doce no fundo e salgada em cima. Gosto de terminar com gosto de caramelo nos lábios. Ah, e me vê também um pirulito, de coração, acho que combina com o filme!A doce vida! Adoro!”O velhinho riu. Entrou. Sentou na oitava fileira. E o filme começou.


“O que penso servirá amanhã. Uma arte clara, limpa. Que não mente, não adula... Penso no amanhã.”
E a mulher responde.
“Se alguém vive intensamente na plenitude espiritual um instante vale um ano e, a cada ano, rejuvenesce cinco. Vocês pensam demais no futuro. Parece tão diferente... o que faz em seus dias? Quero dizer, do que gosta mais?”
“Eu não sei, e a senhora?”
“Eu sei muito bem. Das três grandes fugas: fumo, bebida, cama.”
“Sua sabedoria seria isso?”
“Você lê meus versos e não me compreende. Você é primitivo. Primitivo como agulhas góticas. Tão alto que não pode ouvir voz alguma.”

A menina arregalou os olhos, não entendeu direito, mas achou lindo.

“Não creia na satisfação fechando-se em casa como eu. Sou sério, não sou amador, mas não chego a profissional. A vida miserável é melhor que, creia, uma existência protegida por uma sociedade organizada com tudo previsto, tudo perfeito. Só posso ser seu amigo, não tenho como aconselhá-lo”. O homem do filme andou mais uns passos e disse. “Às vezes, à noite, essa escuridão, esse silêncio oprimem. A paz me amedronta. Temo a paz acima de tudo. Parece apenas uma aparência que oculta o inferno. Penso o que verão amanhã meus filhos. Dizem que o mundo será maravilhoso. Mas como, se basta um telefonema anunciando o fim de tudo. Deveríamos nos libertar de paixões e sentimentos na harmonia da obra de arte realizada. Naquela ordem encantada. Conseguiríamos nos amar tanto e vivermos soltos além do tempo. Soltos! Soltos!”

A menina quer se libertar, mas seus dedos estão lambuzados com o pirulito. Babando e cuspindo sorri e diz: “felizes os passarinhos que amam voar e voam sem sentido. Queria ser assim, solta, me lançar de um penhasco sem o risco do arranhão. Jogar-me e ter, quando quiser, a segurança dos pés no chão”. Shhiiiii, foi o que ouviu na sala escura do cinema. Saiu de fininho (antes mesmo do desfecho final), pediu licença, escorregou, derrubou o pacote de bolachas do menino, machucou o dedo mindinho, engatinhou até a saída de emergência, o alarme disparou. “Bafão”, pensou. Saiu correndo e ria. Queria estar de mãos dadas, mas estava só. “Riso coletivo é ainda mais divertido”.
No caminho de casa achou um gatinho, branco, perdido. Colocou-o sobre a cabeça “quer pirulito?” e ele não quis “Por que chora?” e ele não parou “Quer morar comigo” e ele se agarrou nos fios de cabelo. “Pobre gatinho! Será que gosta de coca light?”
Chegou a casa, arrumou um potinho e alimentou o bichinho. Pensou um pouco no filme e sorriu. “A vida colorida faz muito mais sentido”.


domingo, 6 de janeiro de 2008

A menina que ri.

Depois de olhar a chuva da sua janela ( e esticar a língua pra pegar algumas gotas), a menina ri. Ri com a cara toda molhada e lembra do ano que acabou. A menina ficou tão perdida, tão perdida, tão perdida, que agora anda com um saco de arroz na bolsa, faz uma trilha quando sai de casa pra poder voltar.
A menina, consumista, sai pra fazer compras de ano novo. Ela vai comprar óculos na liquidação do camelô, quer enxergar melhor as coisas que se movem ao seu redor. "Tomara que essas lentes sejam boas" diz sorrindo ao vendedor. "São sim" diz ele com olhos gigantes, dentes afiados, mãos peludas e rabo grande.
A menina agradece.
Ainda no estado de querer comprar coisas, mesmo com o cartão de crédito estourado, a menina pára numa loja de sapatos. "Quero uma bota bem grande que é pra não pisar na lama". A vendedora, uma senhora simpática, com a cara esverdeada, um nariz grande com uma verruga na ponta e um chapéu pontudo totalmente demodê (a menina acha que é pra esconder os cabelos secos e cinzas) se aproxima e oferece um par de congas. "Mas esse funciona?" pergunta a menina. E a senhora diz "claro, são nacionais, seus pés protegidos estarão na caminhada que escolheres".
A menina agradece.
A menina segue ainda pelo centro da cidade, pára na farmácia e pede ao atendente: "moço, acho que estou doente. sinto fortes apertos no peito, tremores nas mãos, a minha voz de vez em quando engasga e eu não consigo falar o que quero. Além disso, meus olhos enchem com facilidade e borra toda a minha maquiagem. A barriga dói, as pernas ficam bambas, o ouvido dá éco. Tem remédio pra isso tudo?" E o homem de um olho só, chapéu esquisito e gancho em uma das mãos responde: "tem sim!" Ele vai até o balcão, junta em um vidro água, açúcar e uma pitada de seu próprio cuspe. Volta sorrindo: "aqui está. Um dos remédios mais vendidos na atualidade". A menina, satisfeita, tira da carteira todo o dinheiro que tinha.
E agradece.
A menina volta pra casa esgotada. Cansou de procurar saídas. Pede uma pizza. Abre uma coca light, fuma um cigarro. Caminha. Sorri. Abre a torneira, lava o rosto. Um pardal entra pela janela do banheiro, fica preso. A menina com cuidado pega o passarinho. Vai até a janela. Carinhosamente abre as mãos pro bichinho sair. Pensa: feliz 2008.