terça-feira, 29 de julho de 2008

O triste fim da mulher do atirador de facas.



"Aqui é minha casa" dizia sobre o colorido desbotado da velha lona, do velho circo, a mulher do atirador de facas. Lucy era seu nome e já não mantinha aos 30 a mesma beleza que possuíra aos 20, mesmo assim era bonita. Lucy amava Oly, o encantador de baleias, mas era casada com Xico, o atirador de facas, seu companheiro no número mais antigo do velho circo.

Oly era tão cego quanto suas baleias. Dançava no mar como criança que brinca na areia. Não lia, escrevia, mas vivia de poesia. Chorava como uma foca ao ouvir as facas de Chico voando e rasgando a beira da roupa de Lucy.

Lucy tinha orgasmos ao sentir a pele arranhando superficialmente. Xico dominava como ninguém aquele número. Todos os dias a mesma coisa: a precisão de cada arremesso era a tristeza de mais uma rotina. Lucy sonhava com o erro, uma cicatriz, uma dor, um sentir, e nada. Xico repetia enquanto soltava as facas: " Belo número, amor".

Lucy um dia cansou. "Me entrego inteira a esse mar, a esse homem, Oly, te amo como amo a liberdade". A Oly beijou, tirou a cola que cobria seus olhos, Oly enxergou. Achou o mar feio, a baleia estúpida e Lucy deprimente. Oly se matou.

Xico sofria e a cegueira se entregou. Definhou. Envelheceu. Ficou patético de tão gordo. Bebeu e vomitou inúmeras noites. Teve mulheres como nunca. Putas, atrizes, dançarinas de cabaré, cantoras baratas, madames em colares de pérolas. Bucetas novas e velhas circularam por sua cama. Mas, Xico só queria Lucy, a companheira dormindo e roncando ao seu lado no buraco de anos do colchão barato.

Lucy alimentava a baleia com sua dor transformada em gotas de por do sol. Se irritou profundamente com a poesia natural das coisas e decidiu ir embora. "Não quero enxergar horizonte. Xico querido, te deixo livre pra seguir qualquer caminho, não quero ser pra ti uma pedra que causa dor. Eu sumo, eu vou, mas te peço, só mais uma vez, a última, faça com que esse momento seja especial".

"Nunca traí mulher minha" consente Xico pegando o saco preto com as facas afiadas e velhas. E na primeira tacada, como se fosse a ação de anos, como se enxergasse mais claro, a faca entra certa, no lado esquerdo de Lucy, no meio. ela olha para cima pela última vez, vê pelo rasgo da velha lona o último pedaço de céu. "Obrigada por tudo Xico". Morre sorrindo, o sangue escorrendo, os olhos cheios sem que lhe caia uma única lágrima.


Fim.

15 comentários:

Anônimo disse...

Fascinante ...
Me identifiquei com um momento de minha vida ...
Beijos
Sandro

Dona Baratinha disse...

Nossa, peraí que estou respirando...
Ufa!
Uauuuuuuuu, guria do céu, bom demais!
Adorei!
Beijos enoooooooooooormes pra você, sempre.

Daniel Olivetto disse...

lindo o texto, mas sempre tenho medo dos meus bons textos... precisa o mundo estar em renuliço pros bons textos virem? fico pensando nisso... comecei a ficar mais feliz e a alzira tirou féris, credo!

beijosss

Sandra Knoll disse...

Meu Deus...Cruzes...bate na madeira guria!
Ai que coisa, acho que o Dani tem razão...to sem o que dizer.
bj

turnes disse...

Oi Paula!
Muito legal o texto, e tudo mais...
vontades loucas de fazer filmes contigo..rsrs
beijos

Anônimo disse...

é, muito forte. intenso pracaramba...

Cid Nader disse...

Oi Paula. Estive modificando meu blog e somente agora estou dando conta das coisas novas por lá. Botei novamente um linkk para o teu e coloquei uma "definição" pessoal da razão, dos anseios dele - isso aparece qdovc aproxima o mouse do link. Gostaria de saber se vc concorda em deixar como fiz ou se prefer uma "explicação" mais aoteu gosto. Meu email é cidnader@gmail.com e meu blog - acho que vc se lembra - www.cinequanon.art.br/cidblog.
Beijo

Anônimo disse...

MEU AMORRR você é uma menina que rie que é a menina que chora? haha, você é muito delicada, muito querida... és fascinante, por favor poste mais coisas no blog, adoro ler... beijos no coração

André Auke disse...

Menina que conto lindo!

Que mais profunda prova de amor desse atirador de facas!

Incrivel como a tristeza tem tanta poesia, deve haver alguma verdade nisso, hehehehe.

Parabéns
Bjs.

Jaguarito disse...

Mas quem consegue resistir as facadas de um amor? Será que o certo, então, é viver sem coração...?

JAIRO PEREIRA disse...

Lindo!!!!


bom conhecer.


Beijos

Marcos AM Ramos disse...

Caramba... Forçado pela minha curiosidade, pesquisei por "Paula Braun" no google e, entre um link e outro, fui trazido até aqui.
Ótimo texto. História instigante, escrita perfeita. Parabéns!!!
bjs

MarujoBHZ disse...

Circo do nosso interior. Deu pra imaginar as cenas, a velha lona do circo, a cara do xico, os lábios da 'xica', o brilho da faca, o cheiro do colchão velho, o cheiro das buças. o sotaque das peças, a sua cabeça pensando nisso. e siga em frente, ou de lado! ou não siga nada.

brecha coletivo disse...

chegando aqui através da srta. feliciana e achando muito bacana tudo. boa viagem!

Paulo Barros disse...

Mallandro... me fez lembrar a história do João Palhaço (não conhece, Google). Bonito e triste. Me dá inveja ver que um pode escrever tal coisa e eu não...
Só isso.