quarta-feira, 26 de novembro de 2008

Alagado.
















Amigos, leitores, blogueiros!

Minha cidade está destruída, assim como boa parte do estado de Santa Catarina. Sinto-me impotente de não poder ajudar, estar perto de amigos e parentes ilhados, desabrigados e desesperados. Aqui no Rio, hoje, brilha um sol que por hora dispenso (preferia que brilhasse em Blumenau), uma insônia de noites de preocupação e um esforço para não largar tudo e voltar pra minha terra, tentar ajudar. Muita sorte, luz e garra pra gente que, outra vez, precisa levantar de uma catástrofe e recuperar os móveis, o orgulho, os perdidos e a beleza da nossa cidade. Amo vocês, e este texto é para vocês. Com todo o carinho. Fábio, usei tua casa como inspiração.

Doações em dinheiro, deposite: Caixa Econômica Federal - Ag. 0411 - Cc 80 000 - 0

Alimentos, roupas, cobertores, fraldas (pra quem é da terra): Fundação Pró- Família, Rua Itapiranga, 368, atrás do Galegão. (fonte: Jaime Avendano, diretor do Jornalismo - SECON, Prefeitura de Blumenau (47) 3326 6995 ou (47) 99689713).



Da janela do meu apartamento vejo a água subindo lentamente. Não há energia, deixei o mercado pra última hora e o último gole de água que me resta dei aos gatos na cozinha. Caminho de um lado pro outro. Escuto o som dos bombeiros, da chuva, e dos carros que teimam em tentar escapar dessa enchente maldita.
Olho pro último lapso de bateria que resta no visor do meu celular. Ligo: “Sonhei contigo. Sonhei com nossa antiga cama e com nosso abraço. Sonhei com um abraço forte. Eu queria, no sonho, te dizer que eu te amo e que acho que vou te amar até o último dia da minha vida. E no momento em que eu te diria isso a água entrou em nosso quarto e desatamos o nó de nossos braços. A água entrou e partiu em duas partes o que sempre foi uma e eu gritava por ti, e tu por mim, e nos separávamos sem saber direito o porque. E eu não respirava como sempre, eu não tinha mais ar, e pela primeira vez na vida vi a morte como um possibilidade fácil e possível. Sem medo na verdade. Acordei. Tudo estava absurdamente escuro e chovia muito. A água batia no parapeito da janela e molhava de leve o velho tapete laranja. Senti tua falta.
Estirei sem medo meio corpo pra fora e senti a chuva bater com força na minha boca semi-aberta. Sede. Pensei em pular. Senti-me ridículo. No morro na frente do meu prédio, uma casa desmoronou naquele exato momento. Junto com ela mais três que estavam embaixo. Uma delas era a nossa. Vi cada bugiganga que consegui juntar na vida virarem nada. Ri dos detalhes ridículos da decoração azul do nosso antigo banheiro sumirem com a lama. Sempre achei brega aquele banheiro. Nunca te incomodou. Vi toda a sua coleção de discos do Beatles virarem adubo. Vi tudo se perdendo sem previsão pra reconstituir. Meu coração partiu. E eu, que tanto choro, não consegui derramar uma única lágrima. Engraçado... Ando chorando pouco mesmo na pior dor.
Eu só queria um sol amarelo, poucas nuvens num céu azul, um campo dourado de girassóis, um vento refrescante, sorrisos em árvores, violinos afinadíssimos tocando a tua música preferida, um rio gelado pra tomar banho e maçãs pra matar a fome. Eu queria neste exato momento tocar tuas mãos de leve com as minhas e te redescobrir inteira. Falar-te de um filme que vi, te atrapalhar a leitura, e rir de qualquer besteira.
Mas, o que tenho aqui dentro é um quarto pequeno e lá fora, chuva. A cidade está destruída. Eu também. E me desculpa te ligar agora, está acabando a bateria, mas eu precisava te dizer essas coisas, sabe como é, o prédio é velho e tenho medo que desmorone, como a nossa casa. Ao mesmo tempo não quero abandonar os gatos aqui sozinhos, os bombeiros não me permitem levá-los. Mas não se preocupe, estou bem. Estou bem.”
Tento seguir e tento voltar.Dou voltas em torno de mim mesmo. Desaba tudo ao meu redor. Vejo a bomba do posto sendo devorada pela água, vejo as ruas por onde andei tranquilamente em minha infância cheias de lama, ouço gritos de mães que procuram os filhos em escombros, e te vejo longe, num bote salva-vidas gritando por meu nome. Tento gritar, a voz não sai, tento correr e não saio do lugar, meu coração bate mais forte, vomito pregos e arranjos florais, e só então percebo que ainda não acordei. Tento conscientemente dentro do meu próprio sonho acordar e não consigo.
Toca o telefone. Desperto. Dou um tapa na minha cara pra ver se acordei mesmo. Sinto dor, alívio. Sorrio. Atendo o telefone. Era você dizendo, 5h da manhã, que sol surgia tímido e a água baixava lentamente. Abri a janela e vi o seu Maneco reabrir o bar e analisar o estrago, um bote engraçado passar entre a sombra do prédio e a claridade do novo sol, e um moço fechar sorridente o guarda-chuvas. Senti um pingo de esperança. Por mais insano que possa parecer, só o que eu consegui te dizer, com a voz falhando e voltando foi, “meu guarda chuvas está quebrado”. Você riu. Eu também. “Eu sonhei contigo!” Saiu da minha boca. “O que?” “Outra hora te conto”. Desligo. Um pássaro canta. Choro.






9 comentários:

Jaguarito disse...

Alagado coração que se afunda em lama... Triste episódio, triste drama...

Vibrar positivamente por quem a gente ama e para o lugar que se ama, já é um afeto.

Santa Catarina sofre e clama por solidariedade.

As palavras demonstram descaradamente o desconforto em se sentir impotente e isso é muito foda... mas quem consegue brigar e ganhar da Mãe Terra (Água), planeta esse debilitado por interesses de alguns ?!

Muita força pra Blumenau e todas as cidades atingidas. Estamos fazendo nossa parte no quesito doação. Nessa sexta-feira no clube da luta será arrecadado alimentos e roupas.

Beijos e saudades dos risos e sorrisos

Rafael Koehler disse...

Achei lindo.

Extremamente emocionante.

ontem também escrevi sobre essa tragédia. =/

mas vamos em frente... tudo voltará ao normal.

beijos,

Anônimo disse...

Pois é menina. Ando, a cada momento em que vejo essa tragédia - tão próxima de vc, de teu DNA - imaginando o antagonismo humano. Entramos em enrascadas "brabíssimas" quando resolvemos desafiar a natureza e seus cursos, suas lógicas, suas potências infinitamente mais poderosas do que nossos bracinhos ou muques - esse é um exemplo típico de uma dessas nossas enrascadas, muito por conta da invasão de tais cursos e muito menos pensando nas nossas culpas nas "disfunções" meteorológicas: que podem ter sofrido com nossas manobras em busca da grana, mas sempre lembrando que de algum modo sempre fizeram parte dos ciclos da Terra (o drama maior se dá porque invadimos as possibilidades dos escoamentos ou mesmo dos desmoronamentos - que sempre existiram - colocando-nos e às nossas casas, nos espaços possíveis de serem invadidos por terra, lama e água).

Mas discussões sobre culpas à parte, o tal antagonismo humano que tem encafifado minha imaginação tem se dado quando vejo as emissoras de TV utilizando todo esse drama - teu drama, afinal - para preencher a grade necessitada de novidades e em busca de uma conseqüente elevação nos níveis de ibopes e afins: elas têm investido forte, colocando uma carga de drama aos aspectos, querendo ver as lágrimas de todos, muito mais do que querendo informar; tentam se posicionar clamando ajuda aos de lá - aos teus -, mas com a evidente intenção de ver lágrimas vertendo; substituíram o caso Nardonne ou o da menina seqüestrada e morta pelo namorado, pelo drama de tua Sta. Catarina; tentam ver lágrimas e desespero nos moradores desamparados e destelhados de lá, encostam suas lentes nas caras, nos olhos, mas o que vêm conseguindo são reações surpreendentemente plácidas (apesar da dor percebida), como se os teus de lá não quisessem participar de um show televisivo em busca da audiência "emotivada" dos noveleiros.

Pra variar me estendi muito, mas eu te leio ou vejo os que estão sob os escombros e me emociono; racionalmente não entro na culpa única de nossos desmandos contra o clima do planeta e procuro nos ver culpados por ações mais simples, como as invasões dos cursos, por exemplo; mas o que mais incomoda é perceber as atitudes de quem sempre e sempre procura faturar “à mundo cão”. Paula, saiba que no fundo todos se preocupam com vocês.

Bjo.

Cid Nader

Algumas coisinhas da Jéssica disse...

Que texto lindo e poético pra falar de algo tão triste...
Mas é assim que fazem os artistas, né?
Tô torcendo pra aparecer um sol por lá.

Beijinho com saudade.

1 disse...

E no momento em que começei a ler, a água entrou pelo meu quarto, eu não tinha mais ar, e não consegui parar até a última letra.

Sobre a tragédia, acho que me aproximo da personagem que, em certo momento, não sente, não chora. Doei algumas coisas nos bombeiros, perto de casa, mas sem sentir. Essa falta de dor me incomoda.

Bom encontrar esse céu azul, com poucas nuvens e um sol amarelo por entre a nebulosidade da internet. Bom encontrar palavras que me fazem "cair para cima", como diz o outro texto. Há tempos que não encontrava um blog com tão belos escritos.

Vou voltar, sem dúvida. Pena que os textos venham com tão pouca frequência.
Bem, nem sempre temos tempo, acredito.

L I B I D I N A G E M disse...

Hey, saudades de vc!

Márcio Cubiak "Cubiara"

Anônimo disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Anônimo disse...

Sabe o que é revoltante ? É ver pessoas usufrirem de doações dos flagelados como foi noticiado.

O melhor do Brasil é o brasileiro ? duvido muito.

Anônimo disse...

adorei essas poesias, são tão lindas quanto vc.
acabei d ver o filme o cheiro do ralo vc é d++++++++++,parabensssss