segunda-feira, 26 de maio de 2008

Abril despedaçado.


Dedicado a Mateus, Tato, Chris, Guto, Prima, Jean, Jaguarito e Lars von Trier.


A menina zerou. Foi sambar e levaram da bolsa quem era a menina. A foto, o telefone dos amigos, os números que são menina em documentos, chave da casa, agenda e bolsa, presente do amigo baiano da menina. Sorte, sorte que na Lapa existem anjos, lindos, amados, que seguraram com força a mão, os braços, e levaram consigo a menina, pra que não chorasse, pra que as tristezas do dia terminassem ali, no vazio do bolso, na casa trancada, no mar da rua que tem na frente.Dormiu envolvida em asas, espirrou com a pena do anjo que entrava pelas narinas. Chorou só um pouquinho.


A menina fez anos em abril. Lembrou, por um momento, do bolo da festa de cinco anos, uma cara de palhaço que dava pena de comer. Lembrou das mãos da avó segurando seus cabelos ainda molhados ("por que não seca?"), do sorriso da mãe preocupada com os convidados ("não põe o dedo no bolo, filha"), da lágrima do pai, orgulhoso, vendo a filha arriscar pela festa alguns passos de balé ("paulica, vem me dar uma bicoca"). Lindas lembranças. Bom ter do que lembrar. Desse ano a menina só quer esquecer. Voltou pro frio de céu azul. Ouviu, sentiu, chorou, surtou. "Nem tive bolo!" Zerou.


Queria escrever, a menina. Sentou no computador, coca light, cigarros, inspiração e... nada. Tudo preto. "O que tem ele, moço? Cadê minhas coisas? Meus textos tristes? Fotos sorrindo e fotos de lugares? Cartas guardadas? Poesia? Segredos descritos em longas dissertações? Onde moço?" E o moço, palito mastigado no canto da boca, facão na mão: "Deu pobrema menina. queimou a tal da placa mãe. Vais ficar sozinha em abril, nada de amigos online, nada de skype, yogurte, email só rápido na lanhouse. Ah, perdestes quase tudo!" "Não, moço, perdi tudo. deixa ir". E a menina deixou.


Caminhando e cantando, sem lenço e sem documento, o sol surgiu. E na primeira terça feliz do mês de maio a menina cortou a mão. 3 pontos, nova cicatriz marcada no canto esquerdo, da mão, do peito. Cicatriz pra olhar a vida toda e não esquecer que tudo merece um recomeço. Zerada, marcada e amada, menina sorridente sonha e volta a cantar como se fosse a primeira vez. Estranha o microfone na mão costurada e segue como se fosse a penúltima canção. Sempre a penúltima (pra que não tenha fim).




"Dizem que é a última canção, mas eles não nos conhecem, só será a última canção se deixarmos que seja." (Dançando no Escuro - Lars Von Trier).