quinta-feira, 28 de fevereiro de 2008






A menina ouviu no andar de baixo a amiga gritar por socorro. Tira o chinelo e acerta a primeira barata da noite. Mais gritos, mais socorro: "são duas e estão na cozinha". e lá vai a menina fuçar dentre os esconderijos escuros: embaixo do fogão, da máquina de lavar roupas, da mala. "São 3", responde a menina depois de esmagar impiedosamente cada um dos insetos. Via-se as entranhas.
A menina não tem medo de baratas, aranhas, mosquitos e abelhas. Até simpatiza com eles imaginando a vida tão ordinária que levam. Quando pequenina conversava com alguns. O mosquito, por exemplo, bichinho simpático que suga o sangue e provoca na pele uma pequena bolinha "é bom de coçar"certo dia lhe disse: "Tenho só um dia de vida. E vc?" ela, "Sou pequenina, mas tenho mais. Quero ver tanta coisa ainda" e olhava pros miudinhos em torno da luz... "bicho burro" pensava e ria.
Um novo grito: "Me ajuda!". E outra barata, dessa vez no quarto. Chineladas após "descanse em paz no mundo dos invertebrados".
O homem está lá, dedetizando tudo. Jogando a modernidade em cada canto perdido da casa da amiga.
Durante a noite a menina teve pesadelos. Acordou como se banho tivesse tomado, como se a janela estivesse fechada, como se lençois fossem cordas. Ar. Quero ar. Respira. Voltou a fuçar os cantos escuros, dessa vez de dentro. A amiga dormia, ninguém pedia socorro. Era ela que gritava, mesmo sem voz, ali, deitada olhando pra nada, como se nada existisse em forma escura. "Não quero chorar, não quero ter medo. Eu sou forte." Gritava "sou forte"! E ninguém ouvia.

Olhou pela janela da sala e viu passearem pelo térreo novas baratas, provavelmente chorando a morte daquelas que partiram. "Eu sou forte" disse a menina pro público, três, pretas e achatadas. "Vou descer e acabar com vocês!"
Ela desceu as escadas com a havaiana na mão esquerda. "Eu sou forte, eu sou forte, eu sou forte" era o mantra que repetia. Olhou de perto, bem pertinho. "Tadinhas...tão assustadas, nem sabem por quê. Correm pra lá e pra cá sem chegar a lugar nenhum. Procuram migalhas e se contentam com um grão de açúcar derrubado por uma criança distraída." Guardou o chinelo. "Amanhã chamo o síndico, esse prédio precisa do veneno dedetizador matador de insetos, do veneno moderno que anestesia e acaba com o que é feio". "Acaba nada" Era uma voz aguda. "Pelo menos esconde" retruca a menina.
Cansada, descabelada e embriagada pelo sono a menina volta pro quarto. Tem medo de dormir e voltar a sonhar. "Eu sou forte" pensa com a força da mais frágil nota de um piano. Na janela aberta (ela ama dormir com a brisa de Ipanema) migalhas de rosquinha doce entretém as mesmas três baratinhas que assistem e aplaudem a menina que agora dorme. Em côro, de patinhas dadas e voz aguda dizem "Sonhe com os anjos menina que ri, sonhe com os anjos."

sexta-feira, 22 de fevereiro de 2008

Sobre os clássicos.


A menina assiste “E o vento levou” com os olhos por trás das lentes de aros vermelhos, vibra com cada lágrima de Scarlett O’Hara. Olhinhos grudados na tela. O coração batendo mais forte. “Jamais sentirei fome novamente” grita a protagonista. A menina chora.
A menina sente fome, as mãos tremendo ao segurar o copo com suco de abacaxi. Tenho medo, grita “TENHO MEDO”. A chuva cai incessantemente. A janela aberta permite que os pingos grossos molhem a almofada de coração. A menina quer se molhar, quer se entregar, quer se jogar pela janela sem sentido. Ri e chora num curto espaço de tempo, como numa rubrica de Tcheckov.
A menina lê, anda pela casa, fuma outro cigarro, joga fora pela metade “souza cruz é uma merda”. Ainda treme. Ainda grita. Ainda chora e ri como na peça.
Cansada da solidão pega o telefone e disca. “Queria dar boa noite”. É a única coisa que consegue dizer, a única. Sem acreditar na timidez, na paspalhice e na bobeira de qualquer apaixonada segue vendo o filme. “Não tenho paciência pra clássicos hoje”. Pega o telefone, finge que disca, finge que é ouvida: “Queria dizer que não sou tudo o que dizes, que sou ciumenta, sou chata, sou agressiva, tenho fortes TPMs que me fazem jogar vasos chineses contra a parede, que gosto de filmes que ninguém gosta, que tenho preguiça de fazer o que já deveria ter feito, que ouço coisas bregas, que comédia as vezes me deixa entediada, que vou ao banheiro de porta aberta, que choro em comercial mesmo achando piegas, queria dizer tantas coisas, meu cabelo é ruim e esse aplique me incomoda, estou gorda, que já não suporto mais ouvir que sou a bunda do filme, odeio gente metida a rica, odeio gente egocêntrica e que se acha especial por algum motivo, e minha unha do pé está feia e machucada (doendo pra caralho) porque saí correndo que nem uma louca pra te ver na TV. Queria dizer também que gosto de ti. Não sei quanto, não sei como se mede isso, mas tenho vontade de estar ao teu lado sem fazer nada, só abraçados, ou de fazer tudo. Que teu beijo e teu abraço são infinitamente bons, que teu cheiro é o mais doce, perigas ser descoberto por uma indústria de perfumes louca por um lançamento arrebatador. Merda! Queria dizer que também tenho medo, que estou assustada e normalmente já teria pulado fora. Tem umas 5 pessoas interessantíssimas me ligando pra sair, e eu dizendo ‘não’, sem entender ao certo o porquê. Agora queria ouvir você.”
Silêncio. O telefone estava com o descanso de tela, uma foto da menina sorrindo na praia. Fechou o celular pra não gastar bateria e foi pro quarto assistir ao resto do filme ao lado de um balde de pipocas, uma coca zero (preferia a light), só. A campainha toca, era o menino. “Dorme comigo hoje?” E a menina dormiu no lugar mais seu, sorrindo e chorando em curtos intervalos de tempo. Tcheckov adoraria.

sexta-feira, 15 de fevereiro de 2008

Da beleza triste de sentir-se só.






O cachorrinho ganha biscoitos. Todos acham bonitinho, ajudam, tem dó. Mas ninguém tira ele da caixinha de apagar cigarros. A menina senta ao lado e se sente só. Quer fazer companhia ao bichinho, mas o trem já vai partir. Ela apaga o cigarro, sorri, despede-se. A menina dorme durante a viagem. Sonha com estrelas. Acorda chorando.

segunda-feira, 4 de fevereiro de 2008

Marinas e maçãs.


“Marina caminha o que sempre caminha todos os dias. Cercada de maçãs sente o cheiro doce, mais do corpo do que da fruta. Mais suor do que sabor. Marina, que sempre acreditou que a felicidade estava no lar, tem medo de abrir a porta e encontrar Antônio. Tem medo de nunca mais poder olhar em seu rosto com a alegria e o aconchego que sempre tivera olhado. Ela, em seu caminho de 88 passos até a fechadura, pergunta-se até onde vale a pena esses momentos tão cheios de prazer que viveu com Pedro. Pergunta se o cheiro, o gosto e a calcinha levemente apertada valem a pena. Pergunta também se o que acredita vale mais do que o que sente agora. Decide, no tempo de um piscar de olhos, tirar os sapatos e pisar no chão de terra. Larga a bolsa, solta os cabelos e sente o vento entrar pelos fios até arrepiar a nuca. Sente novamente o cheiro. Toca levemente com a ponta dos dedos as folhas das macieiras que estão ao alcance de suas mãos. Já não anda mais em linha reta, caminha um passo torto, rodopia, pula, permite-se a loucura. Marina já não pensa. Marina simplesmente deixa os olhos inundarem e sorri largamente, um sorriso feio de tão aberto, mais de gengiva, mais de saliva. Marina quer se perder nos 38 passos que restam até a porta e, no abrir de olhos, vê Antônio com um olhar curioso. Ele não enxerga a esposa que tece, costura e chega com os braços cansados dos repetidos movimentos da máquina. Na verdade se assusta com uma desconhecida que se deixa voar com o vento e a cor vermelha das maçãs.”


Trecho de uma história qualquer, que vai virar um longa qualquer, qualquer dia por aí.Trabalhando no argumento.Obrigada aos visitantes e comentários.

Beijos.